sexta-feira, 27 de abril de 2012


Na história recente, só dois outros fenômenos resistem a uma comparação com O Código Da Vinci na capacidade de imprimir sua marca em todos os níveis da cultura pop: O Senhor dos Anéis e Harry Potter. À primeira vista, porém, parece haver uma diferença fundamental entre eles. Os enredos criados pelos ingleses J.R.R. Tolkien e J.K. Rowling pertencem ao domínio da fantasia, enquanto o americano Dan Brown afirma desvendar uma "verdade", para a qual o gênio italiano que dá nome à obra teria deixado pistas ardilosas: o "segredo" da relação carnal entre Jesus e Maria Madalena, da qual nasceu uma linhagem que prossegue nos dias de hoje. Não é de admirar que O Código Da Vinci tenha indignado muitos dos 2 bilhões de cristãos do planeta, e incendiado a imaginação dos restantes. Agora a adaptação cinematográfica dirigida por Ron Howard e estrelada por Tom Hanks, no papel de Robert Langdon, um charmoso professor de "simbologia" (a cátedra não existe) de Harvard, deve amplificar o ruído já ensurdecedor em torno da obra de Brown. Depois de uma produção cercada de muito sigilo e fanfarra, o filme será visto pela primeira vez nesta quarta-feira, quando abrirá o Festival de Cannes. Na sexta-feira 19, inicia em cinemas do mundo todo, inclusive os brasileiros, uma carreira que pode levá-lo a tornar-se o terceiro título da história a quebrar a barreira do bilhão de dólares na bilheteria – feito até hoje realizado apenas por Titanic e O Senhor dos Anéis – O Retorno do Rei. O Código Da Vinci tem muito a seu favor, além da imensa popularidade do livro. Ron Howard, de Apollo 13 e Uma Mente Brilhante, é um narrador exímio, e o apelo de Hanks junto à platéia já foi diversas vezes testado e aprovado. A francesa Audrey Tautou, que faz a criptóloga Sophie Neveu, é uma estrela em ascensão, e os coadjuvantes, como Ian McKellen, Alfred Molina e Paul Bettany, exibem sólidos créditos dramáticos. As locações são esplêndidas, e o suspense é irresistível. E, em respeito não a crenças e doutrinas, mas à história, essas são as qualidades que se devem procurar no filme: tanto quanto O Senhor dos Anéis e Harry Potter, O Código Da Vinci é, sim, uma fantasia, conforme mostra a reportagem das páginas que se seguem – das melhores já produzidas pela indústria cultural.

Entre a verdade e a ficção
O (pouco) que pode ser levado a sério
em
O Código Da Vinci e o (muito) que
não passa de invencionice
 

Não há dúvida de que o clima de mistério, o tom conspiratório, o corre-corre e os personagens sinistros respondem por uma boa medida do sucesso de O Código Da Vinci. Mas a parte do leão nesse fenômeno pode ser reduzida a uma pergunta: será verdade? Desde a publicação do livro, em 2003, correm debates enfurecidos em todo o mundo, e entre todo tipo de gente, sobre a natureza real da ligação entre Jesus e Maria Madalena – e, com vigor apenas ligeiramente menor, também sobre as verdadeiras atividades da organização Opus Dei e sobre o papel de Leonardo Da Vinci nessa história toda. A seguir, VEJA esmiúça essas questões. Só uma delas ficará sem resposta: o que deu na cabeça de Tom Hanks, afinal, para usar o penteado que se vê nestas páginas?
A Santa Ceia
É possível que a figura à direita de Jesus
seja mesmo a de Maria Madalena?
Essa é a tese central de O Código Da Vinci e, segundo Dan Brown, a "prova" de que um pequeno número de pessoas, entre as quais Leonardo da Vinci, conhecia o "segredo" do relacionamento carnal entre Jesus e Madalena e dos filhos que dele nasceram. Mas essa teoria tão provocativa esbarra numa série de obstáculos. O primeiro deles é que na pintura renascentista era tradição representar João, o mais jovem dos doze discípulos, com aparência andrógina, quase feminina – e sempre à direita de Jesus, por ser seu favorito (ao menos de acordo com o testemunho do próprio evangelista). Dan Brown faz muito barulho também em torno da ausência de um cálice sobre a mesa. Uma das interpretações mais aceitas para a lenda do Santo Graal, ou Cálice Sagrado, é que ele seria a taça em que Jesus bebeu do vinho – ou, simbolicamente, de seu sangue – na Última Ceia. Brown argumenta que a ausência do cálice foi a forma que Leonardo encontrou para insinuar que não se tratava de um utensílio, e sim de Madalena: ela seria o receptáculo do sangue de Jesus, na forma do filho ou dos filhos que teve com ele. Novamente, o que se sabe sobre a arte da Renascença contradiz essa sugestão: o cálice está ausente também em algumas outras pinturas italianas anteriores à de Leonardo, já que o costume era enfatizar não a Eucaristia – a partilha do pão e do vinho –, mas o choque dos discípulos perante a afirmação de que um deles trairia Jesus.


A "PROVA" QUE NADA PROVA
Toda a trama de O Código Da Vinci repousa sobre a afirmação de que a figura representada à direita de Jesus no célebre afresco de Milão (visitado também no filme, por Hanks e Audrey) é a de Madalena, e não a do apóstolo João. Mas retratar João com suavidade quase feminina era uma tradição sólida da Renascença, seguida em dezenas de outras pinturas do período
Por esse mesmo raciocínio, é furada a teoria de que Jesus e Madalena se afastam de maneira a formar um V, ou um símbolo feminino, e que vistos em conjunto formam um M de matrimônio. Para os estudiosos, os apóstolos estão concentrados em pequenos grupos no afresco de Milão a fim de acentuar a desunião e a perplexidade causadas pela revelação de que havia um traidor em seu meio. Outro ponto decisivo, segundo O Código Da Vinci, é a mão "avulsa" que empunha uma adaga. No livro, isso é tratado como um simbolismo de que a verdadeira história de Madalena foi suprimida dos Evangelhos. Estudos em papel do afresco, no entanto, sugerem que Leonardo pensou em retratar o apóstolo Pedro no gesto de sacar da espada para defender Jesus do traidor (ainda incógnito naquele instante), conforme descreveu João em seu Evangelho.

Maria Madalena
Existe algum indício real de que
Jesus e Maria Madalena tenham
tido um relacionamento amoroso?
Em uma palavra, não. A principal fonte sobre a vida de Jesus são os Evangelhos canônicos, escritos por Lucas, Marcos, João e Mateus. Em todos eles, Madalena está presente na Crucificação. Nos de Lucas e Marcos, ela é mencionada também como a mulher de quem Jesus expulsou sete demônios, e que se tornou uma de suas seguidoras. O de Lucas dá ainda a entender que é Madalena a jovem que lavou os pés de Jesus com suas lágrimas, secou-os com seus cabelos e ungiu-os com óleo – episódio que passou à tradição como prova de seus célebres pecados e subseqüente arrependimento, e viria a batizar dezenas de instituições religiosas que se dedicavam a pôr na linha jovens "perdidas". À parte essas menções, porém, sua presença nos textos é um bocado fortuita. Muitos pesquisadores, então, se voltam para os Evangelhos Gnósticos (não reconhecidos pela Igreja), e em especial para o Evangelho de Maria Madalena, do qual se descobriram fragmentos nos anos 1940.
Nesses escritos, ela aparece como a preferida de Jesus e a que melhor o compreende, a ponto de incitar a inveja de Pedro. (Ou talvez sua irritação: pelo que se depreende, Madalena era uma espécie de primeira aluna da classe, sempre com a mão levantada para dar as respostas antes dos colegas.) No texto, Jesus manifesta sua admiração por Madalena e a beija na boca – uma saudação que, no Oriente Médio da época, era aceita mesmo entre homens e não serve como sugestão de preferência carnal. É daí que vem a teoria de que Madalena, e não Pedro, estava destinada a ser a fundadora da Igreja de Cristo. Uma teoria, é bom frisar, menos baseada em pesquisa de qualidade do que inspirada pelo feminismo beligerante da década de 1970.
Na hipótese remota de que um namoro como esse tivesse acontecido, por que ele não passou à história? Uma das teses sustentadas por Dan Brown é que, no século IV, o imperador Constantino armou uma grande conspiração – o Concílio de Nicéia – para suprimir essas informações e aquela, ainda mais explosiva, de que Jesus e Madalena teriam tido filhos. Na verdade, Nicéia não foi um conluio à moda petista, como ele pinta. Foi um dos mais complexos debates teológicos da história do cristianismo. Ao determinar como o aspecto divino e o humano convivem em Cristo, formou a base da doutrina cristã tal como é conhecida hoje. Nesse processo de depuração, que já corria havia séculos, muitos Evangelhos – entre os quais o de Madalena – foram rejeitados ou esquecidos. De acordo com a americana Elaine Pagels, professora da Universidade Princeton e uma das mais eminentes estudiosas de Madalena, essa supressão provavelmente foi mais estratégica do que sexista. Madalena pertencia ao gnosticismo, uma corrente que pregava um duro regime de iluminação pessoal e a rejeição à hierarquia. Uma Igreja assim só atrairia uns poucos caxias e nunca chegaria às massas – e as massas eram o objetivo dos apóstolos que prevaleceram.
Do ponto de vista apenas histórico, a idéia de um amor conjugal entre Jesus e Madalena soa ainda mais frágil. Sabe-se que Jesus tratava homens e mulheres como iguais, o que estarrecia seus seguidores. Numa passagem, por exemplo, ele conversa longamente com uma mulher à beira de um poço. Na Palestina do século I, representantes de sexos opostos não ficavam de bate-papo em público. Sendo Jesus e Madalena solteiros (e ela, sem pai ou irmão para vigiá-la), não haveria como esconder um romance dos íntimos do Nazareno. Como os apóstolos anotaram a boa vontade de Jesus para com as mulheres, apesar de não necessariamente aprová-la, deve-se concluir que teriam registrado também uma ligação afetiva dele com Madalena, se esta tivesse ocorrido. Os historiadores lembram ainda que era algo previsível que a doutrina terminasse por apequenar o papel das mulheres: o cristianismo nasceu do patriarcalismo judaico, e para ele retornou assim que esses primeiros arroubos igualitários arrefeceram. Daí também, por exemplo, a ênfase na virgindade de Maria – e de todas as demais Marias.
Madalena só foi eternizada como prostituta num sermão do papa Gregório, no século VI. Em 1969, o Vaticano tentou reabilitá-la, riscando esse dado de sua biografia, mas a moda não pegou. Embora Madalena tenha um papel crucial no Novo Testamento – é ela quem testemunha a ressurreição de Jesus, o milagre que fez do cristianismo uma potência de 2.000 anos de idade, em vez de uma seita esquecida –, ela parece destinada a ser lembrada sempre como a sedutora. Ou, pelo menos, como quer Dan Brown, uma sedutora mãe de família.

Leonardo da Vinci
A obra de Dan Brown é fiel ao
que a história sabe sobre o
gênio da Renascença?


Divulgação Franco Origlia/Getty Images
SIGAM ESTE HOMEM
O Homem Vitruviano é um dos desenhos mais famosos de Leonardo e também a imagem escolhida, no filme, para conduzir a investigação de um assassinato pela personagem de Audrey, a criptóloga Sophie Neveu, ao seu rumo correto
Obcecado pela relação entre matemática e natureza, Leonardo da Vinci (1452-1519) criou o mais célebre dos estudos conhecidos como "Homens Vitruvianos" – que consistem de uma figura masculina inscrita dentro de um quadrado e de um círculo, de forma a demonstrar a harmonia das proporções humanas, conforme os pressupostos do arquiteto romano Vitrúvio, do século I a.C. Essa é a imagem usada por um fictício curador do Museu do Louvre, em O Código Da Vinci, para chamar atenção para o motivo real de seu assassinato: agonizante, ele escreve mensagens cifradas com seu próprio sangue no piso da Grande Galeria e arruma-se, antes de expirar, na posição clássica do Homem Vitruviano. A partir daí, porém, Dan Brown dá pistas de que seu conhecimento sobre o italiano não é lá muito sólido. O escritor fala, por exemplo, das numerosas encomendas que o artista teria feito para a Igreja. Mas é notório que Leonardo não se deu bem na corte papal, então dominada no plano artístico por Rafael, e trabalhou sempre que possível à margem do Vaticano – que, para começar, nunca o autorizaria a estudar anatomia em cadáveres, como ele gostava de fazer. Leonardo era, à moda de seu tempo, um homem da ciência, e entendia a arte como extensão natural desta. A idéia de que ele a usasse para encriptar segredos esotéricos pode ser muito divertida, mas é também absurda.

Opus Dei
A organização é uma seita secreta,
como
O Código Da Vinci a apresenta?

Franco Origlia/Getty Images
Divulgação
UMA POLÊMICA REALFundada em 1928 por Escrivá de Balaguer (na foto à esq., com Álvaro del Portillo, à esq., e seu atual líder, Javier Echevarría, à dir.), a Opus Dei está sendo obrigada a se tornar mais transparente por causa de O Código Da Vinci. Mas nela não existem monges, como no filme (na foto à dir., Paul Bettany no papel do albino Silas)
O vilão de O Código Da Vinci é um monge assassino a serviço da Opus Dei. A caracterização do personagem já começa com um equívoco: a Opus Dei abriga padres e leigos, mas não monges. Ainda assim, esse é o único ponto do livro que incide sobre uma polêmica real, e não inventada. A Opus Dei não é uma sociedade fantasiosa como o Priorado de Sião. Ela congrega 84.000 membros no mundo todo, dos quais 1.700 estão no Brasil. Graças a sua aura de segredo e a práticas como a autoflagelação, ela se tornou a instituição mais controversa da Igreja Católica.
Fundada em 1928 pelo padre espanhol Josemaría Escrivá de Balaguer (1902-1975), a Opus Dei tem, desde 1982, o status único na Igreja de prelazia pessoal do papa: seus padres não respondem aos bispos locais, mas ao prelado em Roma. Conseguiu esse privilégio por causa do apoio incondicional ao papa João Paulo II, na defesa dos dogmas e valores católicos ameaçados pela modernidade. É também a única instituição da Igreja que congrega padres e leigos lado a lado. A idéia de Escrivá – que foi canonizado em 2002 – era que qualquer católico poderia ser um santo no dia-a-dia, no exercício de sua profissão. Para tanto, não se admite nenhum meio-termo na obediência às orientações da Igreja. A prelazia é ortodoxa em sua condenação ao aborto e ao sexo pré-matrimonial. O perfil típico de seu integrante é um profissional com formação universitária. Embora a organização não goste de ser caracterizada como tal, ela é uma espécie de corpo de elite católico. É também uma força conservadora, com contornos de direita. Na Espanha de Escrivá, vários de seus membros foram ministros da ditadura de Francisco Franco.
As duas categorias fundamentais da organização são os numerários, que moram em centros da Opus Dei, e os supernumerários, que somam 70% de suas fileiras e vivem fora. Somente os numerários praticam o celibato e se submetem à "mortificação corporal" – práticas que incluem o uso do cilício, cinta com pontas aplicada sobre a coxa, e da disciplina, espécie de chicote de corda com que se golpeiam as costas ou nádegas. Não é a autoflagelação sangrenta que se vê em O Código Da Vinci (embora o próprio Escrivá levasse a prática a extremos), mas é sem dúvida uma mostra de devoção violenta. "A mortificação é psicologicamente muito pesada. É algo que vai contra a natureza humana", diz o professor de matemática da USP Antonio Carlos Brolezzi, ex-numerário e autor de Memórias Sexuais no Opus Dei (Panda Books).
Como Brolezzi, muitos que deixam a Opus Dei fazem críticas duras ao clima de repressão e obediência absoluta. Afirmam, por exemplo, que não tinham pleno conhecimento da natureza radical do compromisso que estavam assumindo ao entrar para a organização. "Essa falta de transparência acabou prejudicando a própria Opus Dei", diz o jornalista americano John Allen Jr., autor de Opus Dei – Os Mitos e a Realidade (Campus/Elsevier). Allen, porém, acredita que, por força das críticas, a organização se encontra na contingência de ser mais aberta. Apesar dos exageros, o livro O Código Da Vinci foi importante nesse ponto: "Hoje, só quem passou os últimos anos escondido em uma caverna pode alegar que não sabe das práticas da Opus Dei", diz Allen.

O Priorado de Sião
Leonardo inventou um cryptex e
fez parte de uma sociedade secreta,
como afirma
O Código Da Vinci?


Toshifumi Kitamura/AFP

Um dos recursos que mais chamam atenção em O Código Da Vinci é o artefato intitulado "cryptex": um cilindro dotado de senha e concebido de forma a destruir o pergaminho contido em seu interior, caso alguém tente violá-lo. O engenhoso cryptex é a cara de Leonardo, cujo gênio irrefreável legou para a posteridade desde magníficos estudos anatômicos até desenhos para máquinas aladas. Mas quem vê cara não vê autoria: nenhuma invenção semelhante ao cryptex consta dos copiosos Códices em que o artista registrou seus esquemas e esboços. O mérito pela criatividade provavelmente pertence ao próprio Dan Brown – e a um punhado de sujeitos empreendedores que hoje fabricam suas versões do cryptex e as vendem pela internet.
A mais divertida (e provocativa) brincadeira de O Código Da Vinci, entretanto, é "revelar" a existência de uma sociedade secreta chamada Priorado de Sião, que teria sido fundada em 1099 para guardar a verdade sobre a descendência de Jesus e Madalena – e da qual Leonardo teria sido grão-mestre. O verdadeiro Priorado de Sião foi uma confraria inocente estabelecida por um grupo de amigos em 1956. Na Biblioteca Nacional francesa existem documentos que falam das supostas atividades ocultas da sociedade; mas eles foram forjados e plantados ali nos anos 70, a título de blague, por um certo Pierre Plantard, que tinha ficha policial por fraude e associação com grupos anti-semitas. Já houve até documentários da televisão inglesa, a BBC, sobre a farsa. O Priorado, assim como muitos dos "fatos" de O Código Da Vinci, foi aproveitado por Dan Brown de um exemplo consumado de uma corrente literária que se poderia chamar de pseudo-história: Holy Blood, Holy Grail ("Sangue Sagrado, Cálice Sagrado"), dos autores Michael Baigent, Richard Leigh e Henry Lincoln, um best-seller nos anos 80. Como imaginação fértil não entra na categoria de propriedade intelectual, no mês passado um juiz inglês inocentou Dan Brown da acusação de plágio movida por Baigent e Leigh.

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